segunda-feira, 28 de março de 2011

O menino mais feliz do mundo.

São Paulo, 10 de abril de 1999, sábado, 2 horas da tarde. Calor, sol, um gordinho dentuço com um boné do Rubinho Barrichello, à época na Stewart (!), enfiado na cabeça raspada. Olhar afoito, procurando o que ainda não se via na pista vazia de Interlagos. Até que surge um burburinho, a galera em volta se agita e, lá do outro lado do circuito, rasgando a reta oposta, surge a Jordan amarela de Damon Hill. Depois do barulho, é claro, que já impressiona mesmo vindo lá de longe. O carro serpenteia pelo miolo da pista, some por alguns segundos depois da curva da junção e irrompe na reta dos boxes, levantando o gordinho e mais as setenta mil pessoas presentes em Interlagos. Os poucos pêlos do braço arrepiados, um sorriso que mal cabe no rosto, entre as bochechas enormes. Aquele barulhão que ecoa lá dentro do estômago e volta em forma de grito de euforia. Olho pro meu pai e vejo nele o que provavelmente ele viu em mim. Brigado, pai, por me fazer o menino mais feliz do mundo naquele dia.
Muitos anos se passaram, muita coisa mudou.  Todos crescemos, encaramos vestibular, paixõezinhas, paixõezonas, faculadade, estágio, (des)emprego...mas tem coisda que fica e se renova. Na minha vida, Fórmula 1 é uma delas, e todo ano eu e meu pai vamos pra Interlagos passar o que costumamos chamar de 'o melhor fim de semana do ano'.
Lá eu vi o alemão ganhar muito, o Rubinho ficar no quase, o Massa quebrar um jejum de vitórias brasileiras em casa que durava 13 anos e o quase título de 2008, perdido pro Hamilton por um ponto, na última curva da última corrida do ano, sob muita chuva.
Por isso, aguardei o filme do Senna com muita expectativa, com a mesma vontade de quando acordo de madrugada ou nas manhãs de domingo pra ver uma corrida. Depois de um fim de semana de formaturas, lá fomos eu e meu pai pro cine Com-tour, aquele do post da Audrey, o único na cidade a passar o documentário premiado em Sundance este ano. Pois é, o cinemão aqui da cidade, chegado a encher os cofres e esquecer dos bons filmes de menor pompa, preferiu o documentário do Justin Bieber ao filme do Ayrton. Vai entender...
Domingo, dia de corrida. Não poderia ser diferente, domingo sempre foi o dia dele. O ar condicionado da sala tava quebrado (é, anônimo, eu também tava lá), advertiu a simpática moça da bilheteria. 'E isso faz diferença?', pensamos eu e meu pai. Pra quem espera 12 horas entre fila na rua e arquibancada dura pra asssitir a uma corrida ao vivo, uma hora e meia sem ar é fichinha. Pra quem gosta, sempre vale a pena. 
As luzes coloridas das paredes da sala, meio retrô, meio bregas, foram piscando e se apagando, até o vazio escuro ser invadido pelo eco de um carro e os pêlos do braço arrepiarem de novo. 
Excelente compilação de momentos, imperdível, impagável. Vídeos que muitas vezes procurei no youtube e assisti em baixíssima qualidade, todos reunidos em ordem cronológica, temperados por narrações empolgadas (confesso, gosto da emoção que o Galvão passa), comentários inéditos de especialistas e depoimentos de familiares e amigos. 
Pra quem não viveu ou viveu muito pouco nossa era de ouro da Fórmula 1, logo dá pra entender o que foi Senna. Um poder de comoção, ressalte-se, impressionante desde antes de sua morte, que poucas pessoas conseguem ter, dentro ou fora do esporte. A preguiçosa manhã de domingo, dia de dormir até mais tarde ou ir à missa, tomou um novo significado na vida do brasileiro. E o que dizer das madrugadas, em três das quais Senna foi campeão lá do outro lado do mundo e o Brasil acordou pra assistir? No esporte do Brasil, só a seleção de futebol se encontra no mesmo patamar dele. Enquanto só a seleção faz um país continental parar no meio de um dia de trabalho pra ver a copa, só Senna fazia um país continental acordar de madrugada pra vê-lo vencer lá longe.
Ayrton Senna não era do Brasil, Ayrton Senna era o Brasil. Ao invés do solitário punho cerrado com o dedo indicador em riste como comemoração da vitória dentro do cockpit, gesto costumeiro dos pilotos vencedores, Senna erguia a bandeira do Brasil. E era como se todos estivéssemos lá dentro, com ele, volta após volta, até o êxtase. Senna sempre fez questão de nos dar carona, sempre vencemos juntos. Não é à toa que, após sua sofrida primeira vitória em Interlagos, ele disse 'essa a gente tinha que ganhar'. A gente tinha que ganhar, não ele.
Pontos pro diretor, que conduziu com maestria os momentos tocantes da vida e carreira do ídolo mesclando com os mais duros, de adversidades, além das descontrações familiares. Senna fora das pistas, sobretudo nas reuniões de pilotos, era tão impressionante quanto dentro de um carro.
Destaque pra rivalidade tensa com Alain Prost, o francês narigudo, e as trocas de ferpas e rodas um ano após o outro, dividindo curvas e títulos mundiais. Eletrizante, como se fosse a primeira vez, como se tudo fosse inédito. Frases fortes, tiradas ácidas, encontros marcantes. A prova de que a vida real possui roteiros tão complexos e excitantes quanto as ficções do cinema. 
O filme termina e fica um gosto de quero mais. Mais imagens, mais do passado tão saudoso. E o pensamento inevitável de como seriam as coisas se o dia 1º de maio de 1994 tivesse sido ligeiramente diferente, se aquela barra de direção não tivesse rompido.
Outro dia inesquecível, onde pude relembrar tantas emoções igualmente inesquecíveis. Como naquele 10 de abril do distante 1999, fui o menino (nem tão menino) mais feliz do mundo, dividindo com meu pai o que de melhor esse esporte já nos proporcionou.
É o que mais de impressionante há nas coisas que gostamos pra valer: o poder de nos absorver completamente e nos fazer felizes feito crianças. Fórmula 1, Senna, cinema. Valeu, pai, de novo.  

Clint.

2 comentários:

  1. Vc me fez chorar. Não foram olhinhos brilhantes não, foram lágrimas de verdade. Seu post me levou ao filme (que eu também adorei) o tempo todo. Vc passou paixão em cada linha que escreveu, e isso, mais até do que a história em si, me emocionou. Quanto mais sentimento vc coloca num texto, melhor ele fica.

    beijos,
    Audrey.

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  2. Primeiro, antes de mais nada, agradeço a lembrança por um anônimo dentre tão belas palavras, que faz transcender a saudade e o amor platônico de cada um dos brasileiros que acordavam pela manhã aos domingos, ou ficavam acordados madrugadas a dentro, para ver um verdadeiro campeão.

    Fui questionado porque não havia comentado o post, já que eu me dizia ser fã do Senna. Respondo, depois de um depoimento apaixonado de um verdadeiro aficcionado pelo automobilismo, e mais, por um brasileiro chamado Ayrton Senna da Silva, minhas singelas palavras não teriam o brilho e não combinariam com a moldura, com a obra de arte digitada pelo Clint.

    Apenas posso dizer que eu sou um brasileiro que, na época da mais teneborsa catástrofe do esporte nacional e mundial, no dia 01.05.1994, com então apenas 10 anos de idade, chorou!

    Assim como chorou, não me recordo o dia, mas o ar-condicionado do cinema estava quebrado, quando assistiu ao filme que retratava apenas 1% do que verdadeiramente Ayrton Senna da Silva foi.

    Parabéns Clin, é uma singela homenagem figurado em um depoimento sensacional de alguém que verdadeiramente amou aquele que nos trouxe a mais perfeita e estonteante alegria e o sentimentalismo que ecoa em muitos estádios de futebol: "Eu sou brasileiro, com muito orgulho"

    Tã nã nã

    Anônimo!

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